
Lições curdas sobre a libertação das mulheres
Recentemente, as mulheres curdas foram incluídas nas manchetes da mídia ocidental por seu papel no combate ao autointitulado Estado Islâmico (EI), especialmente na ocasião das operações de retomada de Raqqa, na Síria. As guerrilheiras curdas foram retratadas deste lado do mundo como heroínas da democracia e do combate ao terrorismo islâmico, a partir de uma narrativa orientalista que busca enquadrar sua agência política no universo dos valores liberais da contemporaneidade ocidental. Entretanto, essa abordagem não compreende os processos protagonizados por essas guerrilheiras, visto que as unidades de autodefesa feminina são apenas uma pequena parte da batalha dessas mulheres por sua vida e liberdade. Nas últimas décadas, a experiência do movimento radical de mulheres curdas produziu um projeto de libertação que é, em grande medida, crítico e até mesmo antagônico a elementos constitutivos do feminismo ocidental, tais como a democratização das instituições, o empoderamento feminino individual e a sororidade. Para compreender essas críticas e as alternativas teóricas e práticas propostas por elas, é necessário entender o contexto em que essas mulheres lutam: a revolução no noroeste do Curdistão. LIBERTANDO A DEMOCRACIA DO ESTADO Desde tempos imemoriais, os curdos resistem à exploração, guerras e genocídios. Trata-se de um povo cujo território foi retalhado e usurpado pela imposição das fronteiras de quatro Estados nacionais: Turquia, que ocupa o norte do Curdistão (Bakur), Síria à oeste (Rojava), Iraque ao sul (Basûr) e Irã ao leste (Rojhilat). Esses Estados têm promovido esforços de limpeza étnica visando a destruição da identidade curda, como deslocamentos forçados, proibição da língua, rituais e celebrações, perseguição às organizações e lideranças, confisco de terras e monumentos, renomeação de seus marcos históricos e geográficos tradicionais, além do genocídio que tem exterminado fisicamente milhares de curdos. Na primeira metade do século XX, os movimentos nacionalistas curdos travaram um profundo combate contra o colonialismo, reivindicando a criação de um Estado nacional para seu povo, demanda negada pelos tratados internacionais do Pós-Primeira Guerra Mundial. O fracasso da luta independentista e a perseguição imposta pelos Estados, estimularam a reorientação estratégica de uma das organizações políticas que atuava na luta armada pela libertação nacional do Curdistão, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), fundado em 1978 na Turquia. Seu novo projeto político e social, elaborado teoricamente por Abdullah Öcalan (encarcerado em isolamento na Turquia desde 1999), foi denominado confederalismo democrático e tem a libertação das mulheres como um de seus eixos fundamentais. O confederalismo democrático se tornou o paradigma adotado pelos movimentos curdos radicais nas regiões de Bakur e Rojava [1], que deixaram de promover uma luta de libertação nacional com o objetivo de criação de um Estado independente, e passaram a se dedicar à construção de uma nação democrática que se autogoverna. Nessa perspectiva, o sistema estatal é substituído por um sistema democrático do povo sem Estado. Ao rejeitar o nacionalismo e o poder estatal, o confederalismo democrático curdo promove uma experiência anticapitalista, antiestatista e antipatriarcal.No contexto da Guerra Civil na Síria, o enfraquecimento das tropas de Assad no norte do país ofereceu a oportunidade para que a população do Curdistão sírio efetivasse seu projeto de autodeterminação, iniciando sua revolução em 2012. Na época, 2 milhões e meio de pessoas vivam na região. Em 2014, é publicada a constituição federativa e autônoma de Rojava. Rojava é composta por 3 cantões autônomos e confederados, Cizîri, Kobanî e Afrin. A organização nesses territórios ocorre a partir de um sistema de conselhos populares, cuja unidade mais fundamental são as comunas, instâncias deliberativas de bairros ou vilas de até 400 famílias, que funcionam em um sistema assembleário em regime de democracia direta, em que todos tem direito à voz e voto. As comunas deliberam e executam medidas políticas, econômicas, educacionais e de segurança relativas ao seu local de moradia. As comunas enviam representantes para os conselhos de bairros e aldeias, que representam até 30 comunas e elegem representantes para os conselhos distritais, que tem jurisdição sobre cidades inteiras. O conselho superior da região de Rojava é o Conselho Popular do Curdistão (MGRK), em que participam delegados dos três cantões. Ao lado das instâncias deliberativas, existem as instâncias executivas, algo parecido com um parlamento, as Administrações Autônomas Democráticas. Estruturas análogas existem em Bakur (norte do Curdistão, região atualmente ocupada pela Turquia). Nessa organização, o poder é descentralizado e emana da esfera local. Cada cantão estabelece suas instituições e milícias com completa autonomia e os princípios para sua confederação são a livre associação e a solidariedade. As escolhas de representação nas instâncias respeitam critérios de proporcionalidade de etnia (10% para minorias étnicas e religiosas) e gênero (40% de mulheres). A coexistência pacífica e colaborativa entre diferentes etnias e religiões é baseada no princípio do pluralismo radical, que garante a autonomia organizativa e representação a todos. Há ainda o critério de coliderança – todas as reuniões, comitês e órgãos são presididos conjuntamente por um homem e uma mulher. Em todos os níveis, existem as instâncias exclusivamente femininas, que tem poder de veto sobre as deliberações das instâncias gerais. Nas regiões autônomas, a população local é incentivada a se dedicar à agricultura e pecuária, atividades historicamente reprimidas pelos regimes estatais para forçar a dependência e vulnerabilidade dos curdos. O sistema de economia popular se baseia no trabalho coletivo e cooperativado, na abolição da propriedade privada da terra e infraestruturas, na gestão dos trabalhadores e no manejo ecológico. Existem diversas cooperativas de trabalhadoras, com a perspectiva de restaurar a capacidade produtiva das mulheres e garantir sua independência econômica a partir do controle sobre os produtos do trabalho. AUTODEFESA NA SOCIEDADE CONFEDERALISTA DEMOCRÁTICA Não se pode ignorar que esse projeto luta para se afirmar em um cenário de guerra. Como resultado da retirada parcial das tropas dos EUA/Coalização e da operação Fonte de Paz, quando tropas turcas avançaram sobre território sírio e conseguiram romper a continuidade territorial de Rojava (em 06 e 09 de outubro, respectivamente), se intensificaram os ataques das chamadas células “dormentes” do Estado Islâmico. Agora, seus atentados são especificamente direcionados à membros da Administração Autônoma ou das forças de defesa curdas. Os